segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

EM BUSCA DE UM ROTEIRO

EM BUSCA DE UM ROTEIRO

Uma alma vaga dentro e fora do corpo.
Boia na imensidão da terra, assustada, desassistida,
como o pássaro que caiu do ninho em hora imatura.
Há tanta coisa a lhe roubar a essência:
uma maré de saudade,
um vulto estranho rente à consciência
perdida entre os sentidos que se mesclam equivocados;
o medo, a incerteza a imputar-lhe culpas,
como se fosse fácil saber
a que hora o vaga-lume vai acordar e luzir.
Sem céu e sem chão: só sombra,
desvalida, em busca de um roteiro,
que lhe mostre onde os estilhaços foram parar
e o que resta a ser colhido nesse canteiro de dúvidas.
Do lado de fora tudo é simples e possível,
a vida é moldada por um protótipo sem raia
e não hesita em cobrar aquela centelha que ainda ninguém viu
e nem sabe onde encontrar.


Basilina Pereira

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O DILEMA

O DILEMA

Um lenço torcido no varal,
sensações que se recusam a dormir
e amanhecem como sussurros partidos
rente a um precipício que se bifurca: repúdio e atração.
A manhã se ergue pálida,
indícios de carências mal dormidas
e um dia inteiro para deglutir.
Diante da porta ainda fechada o dilema:
transpor e repisar a rotina
com os mesmos sapatos rotos
ou renascer – sol e poesia –
para salvar o poema
e transmudar a pétala líquida
que teima em tombar sobre a face.


Basilina Pereira

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

CANÇÃO DE CHUVA

CANÇÃO DE CHUVA

Minha voz deve manchar os teus silêncios,
ou por outra,
açoitá-lo com os sons que não sei trancar no escuro.
Fico imaginando um balanço na varanda,
teus lábios se movendo num bailado macio
e meus olhos, calados, bebendo cada palavra
que a minha imaginação desenha.
É preciso asas para sobrevoar a emoção
e perspicácia para desvendar os mistérios
camuflados nas entrelinhas do poema mudo.
Mas quando a poesia vibra no telhado,
até o teu mutismo se dissolve
e entoa uma canção de chuva
para eu ouvir em devaneio.

Basilina Pereira



quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

POR QUÊ?

POR QUÊ?

A viagem é de muitas faces:
por campos molhados, becos escuros,
contra e a favor do vento.
Às vezes o sol, esse farol que semeia alento e luz,
recolhe-se ao reino da abstração.
Dizem que o escuro cai bem – ele é o anteparo da lua,
das estrelas e o jardim dos nossos sonhos.
Mas há tanto medo no escuro!
A vida é uma pétala revestida por película tão fina,
que a custo suporta as quatro estações.
Falam também que é bobagem pensar nessas coisas,
o mundo está cheio de mendigos e loucos
e, mesmo assim, o menino faminto ainda sorri,
brinca com a bola de pano e morre, plenamente,
num campo de refugiados qualquer.
-Silêncio! Tem mais coisas que afirmam por aí
e com as quais a maioria dos olhos se acostuma.
-Não tem jeito, alegam! E eu pergunto:

Por quê?

Basilina Pereira

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

PELO CAMINHO


PELO CAMINHO

Expulsar as cores vampiras,
deixar os tropeços no canto inferior da tela,
harmonizar o poema com algum sorriso da memória
e camuflar as marcas difíceis de curar
pode ser um bom começo
para apreciar a paisagem,
colher flores e esperar o crepúsculo.


Basilina Pereira

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O JUÍZO FINAL

O JUÍZO FINAL

A Poesia sucumbiu entre a toga e a caneta.
A Mesa, de pernas curtas e quinas despenteadas,
tatuou um Buda cego no tampo
e fechou a fresta que delimita
onde o bom senso deve pousar.
O Buda surdo, evocado às pressas,
ignorou o apelo e protegeu seu umbigo descalço.
Ninguém, nesse Reino, nunca viu algo parecido,
nem nos filmes de terror,
nem nas histórias de assombração.
No escuro que acena mais adiante,
há uma bandeira com os joelhos cortados
e uma nação banhada pela incredulidade.


Basilina Pereira

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

PARA HAVER POESIA

PARA HAVER POESIA

Não há poesia quando o sentimento descarrilha,
quando a vida engole as palavras,
e o amor se esconde do fogo
na varanda onde o reboco desabou.
Poesia não há na palavra coagulada,
no verso vazio, na jarra sem flor,
no poema oco que vaga a esmo.
A poesia se reserva para os momentos
em que o espanto surpreende, encanta
e torna singular as arestas do plural.


Basilina Pereira

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

RITUAL DE BEIJA-FLOR

RITUAL DE BEIJA-FLOR.

Sentir a palavra na boca,
seu som ecoando no peito,
feito reflexo, no espelho líquido do lago
onde o poema vem banhar-se.
Líquido fonema
desliza por lábios sem mágoa
num sopro delgado e liso: ritual de beija-flor
enchendo o ninho de poesia.


Basilina Pereira

terça-feira, 29 de novembro de 2016

O PASSO SEGUINTE

O PASSO SEGUINTE

Uma estrada a percorrer sem mapa, 
pés avulsos, olhos nus,
corpo tragado pela distância,
sensação de estar perdido
dentro dos próprios pensamentos.
O caminho a ser trilhado é sem volta,
feito o rio que que tem por bússola a solidão.
Carregar todos os vultos passantes
e agarrar o momento em que o sorriso acordou
é como dobrar o silêncio para multiplicá-lo,
como se fossem gotas no deserto.
O passo seguinte
é sempre um não saber onde e quando,
uma lição a ser lida de costas
e com os olhos vendados.

Basilina Pereira

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

SONHOS DE POETA

SONHOS DO POETA

Palavras vestidas de luz,
flores que dormem no chão,
pássaros com asas em cruz
e um poema em gestação.

Na mente versos de anis,
forjados na palma da mão,
rimas marcadas com giz
no compasso da emoção.

E assim flutua o poeta,
com um sonho em cada mão,
a alma sempre inquieta
desnuda o seu coração


Basilina Pereira

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O FAROL E OS SONHOS

O FAROL E OS SONHOS

Um pouco de silêncio, um tanto de utopia,
é o que segue manhã afora,
se a maré não der contraordem
e voltar ao ponto de partida.
O sol nem se mostra
e sua ausência vai sendo suprida
por ideias que perfilam inquietas
e, aos poucos, vão se espalhando
entre notícias e navalhas
que invadem os arrecifes do medo.
Entre um minuto e outro, a poesia chama.
Nenhum náufrago chegará à praia
se não acender um farol no peito e sonhar:
com letras miúdas voltando pra casa,
versos soltos querendo abraçar-se
e um poema de amor
que onda nenhuma poderá tragar.

Basilina Pereira


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

RESPINGOS POÉTICOS

RESPINGOS POÉTICOS

Uma chuva fininha respinga lá fora.
O poema quer molhar-se a todo custo,
sussurra, conjura, esperneia,
tanto faz que não me resta escolha.
Há tanto mais pra fazer, penso!
Mas ele trava a manhã com sua urgência,
faz cócegas em minhas ideias,
embaralhando-as com seus arroubos incorpóreos
e não me deixa saída.
O jeito é interromper a rotina dos pássaros,
colher o vibrato harmonioso do seu canto
e deixar que os versos fluam
na única brecha onde o tempo não importa.


Basilina Pereira

domingo, 13 de novembro de 2016

QUANDO SE LÊ

QUANDO SE LÊ

Quando se lê um livro,
alguma luz se acende
num planeta distante.
Nada mais será igual:
há o antes e o depois;
durante é processo e êxtase,
pedras que descolam das nuvens e voam,
mesmo que o gosto a deglutir seja amargo.
Quando se lê um livro,
a humanidade dá mais um passo e avisa:
nem tudo está perdido!

Basilina Pereira


sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O VULTO

O VULTO

De repente,
na memória,
aquele vulto.
Nem forma tem,
só flutua
e acorda a velha chaga
que já tinha virado poema.


Basilina Pereira

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

OS DOIS LADOS DO POETA

Como hoje é dia do Poeta, o tema não poderia ser outro. Parabéns, parceiros do verso.

OS DOIS LADO DO POETA

Do lado de fora uma aparência de espera,
coisas lá da infância, onde a pressa não tinha morada.
Mas do lado de dentro! Um oceano
que vive para fazer do sal uma possibilidade que adoça,
um jardim de palavras irrequietas que, mal florescem,
já querem capturar o futuro.
Sim, o interior é suspiro inadiável
que lapida versos com o brilho das estrelas
só para lembrar que sua seiva é imprevisível:
por vezes encolhe ante a altas temperaturas,
mas por outras eclode em pleno inverno.

Basilina Pereira

terça-feira, 18 de outubro de 2016

HAICAI

 
Haicai

Calor do verão
folhas cruas e sem cor
transpiram no chão.


Basilina Pereira

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

SONETO POÉTICO

SONETO POÉTICO 

A poesia é a melhor parte do poeta,
sua ventura que ele exibe sem saber,
é a mensagem que dispensa o exegeta,
a magia que embala o entardecer.

Das entrelinhas do poema surge o lume
que por si só não cabe em qualquer palavra,
como a aranha tece a teia por costume
o aedo forja em versos sua lavra.

Não existe beleza maior que o fruto
do signo que desfolha encantamento
e se espalha em viração, resoluto.

Só em sonho a mão tinge o firmamento,
planta estrelas de um brilho absoluto
e faz da lua a inspiração do momento.


Basilina Pereira

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O CAMINHO DO PODER

O CAMINHO DO PODER

Surgiu no ventre da pedra,
rasgou a paisagem de través,
subiu no dorso do abutre
e mastigou-lhe o voo de dentro pra fora.
Apetite voraz,
daqueles que devoram o arame farpado
como se degustasse a maciez do fruto maduro.
Em meio ao que aparenta, sucumbe a verdade,
camuflada por olhos que iludem.
Entre a promessa e a paga, o discurso:
as mil maneiras de fazer o polvo virar borboleta.


Basilina Pereira

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O BARCO



O BARCO

Nem tudo está bem, sempre.
Há fissuras nas raízes
e uma espécie de indecisão
quanto ao tempo que borbulha por dentro.
Arrepender-se não está na pauta,
nem na prateleira de fora
onde chovem perguntas que não ganham altura
e o sol se perde na quina dos beirais.
Sob a neblina, uma alegria ingênua resiste:
é ela que camufla os medos
e abre caminho como um barco em busca do porto.

Basilina Pereira